A morte também é cotidiana. Apenas eu me esquecera disso. O amigo morto
devia ser notícia tanto quanto a quebra do banco, a luta de boxe, o
massacre dos sem-terra, a barbárie das torcidas de futebol. Que importa o
mundo? O fato é este: o amigo hoje já não existe. Fechou os olhos para
mim. Calou-se sem explicações.
É tão absurda a morte do amigo que me ofende -teria sido tramada toda
contra mim, uma traição sem tamanho, a mim que sempre fui pela vida e
pela fé. Pois eu me recuso a enterrar o amigo morto, a dar sepultura ao
corpo no sagrado, sobre o caixão que se
pretende fechado.
Sei que a morte é uma mulher sedutora, longos cabelos negros, corpo
perfeito. Seduziu o amigo, está rindo agora de mim e dele, como quem
afinal conseguiu o que queria. A morte é uma puta toda vestida de preto.
Mas eu não boto luto. Não me igualo a ela. Não me despeço. Sinto mais
raiva, mais vazio do que dor.
Aqui, diante do futuro túmulo, admiro a independência que a morte deu ao
amigo -a liberdade, a serenidade de quem é amado! Presa mesmo fico eu à
vida terrena, a deixar pingar sobre o cadáver o sangue da minha própria
ferida aberta -que não dói, apenas sangra, já disse.
Não pretendo, com meu sangue, o milagre de reavivá-lo. Meu sangue é
apenas minha memória inevitável, minha saudade escancarada. Ele que se
mantenha amado e morto!
A morte do amigo é punição pessoal contra mim, como se eu fosse a mulher
da lenda, que vai vender azeite às portas do inferno, para alimentar o
fogo eterno a que são condenados os maus e os perversos. Não sou! A morte
é que é a puta, depravada, dissimulada, doidivanas.
Eu precisaria sim me vingar, querer do boxeador um pedacinho do soco
cruzado de esquerda, o nocaute. Do torcedor bárbaro, um gomo da fúria
cega, o pedaço de pau, a pedra. Do policial assassino, querer o chute no
rosto, a coronhada, o revólver covarde, o tiro pelas costas.
Mas atirar contra quem? Por quê? Como jamais prever a morte cotidiana a
se insinuar, a chegar de mansinho e de súbito? Como perceber que o amigo
estava morrendo? Ficou tarde demais. Não sei a quem atingir. Era
necessário que me acendessem um candeeiro nas trevas.
Há dias estou eu própria acesa, sem sono, uma chama a inflamar o nada,
uma vela a queimar solitária no velório involuntário. Não enterro ninguém
que decidiu morrer. Não entendo qual foi a moléstia. Não tenho nada a ver
com isso. Nunca tive anjo da guarda. Não reconheço sentenças de tribunais
celestes, estarei ausente do juízo final. Minha alma não pesa, não se
pesa.
À balança onde são pesados os pecados e as virtudes das almas, digo
foda-se. É. Sinto muito. Afinal, que reação esperaria de mim o amigo na
hora dessa sua morte “natural? Dignidade, compostura, elegância diante da
fatalidade. Pois eu detesto essa palavra dignidade. Faço o quê, com a
minha? Vou pra cama com ela? Ao cinema? À feira? Transformo-a em moeda
corrente? Dignidade não dá camisa a ninguém. Dignidade, teu nome é morte.
Coveiros me observam. Não. Não me peçam nada. Não tenho nada a ver com
isso. Não ajudo a carregar o féretro. Não jogo não, a pá de terra.
Prefiro o amigo a vagar para sempre, corpo impalpável, alma penada,
morto-vivo, assombração dos meus frustrados sonhos de vida.
–Marilene Felinto
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